Sobre Tim Maia, paixão e minha preciosa, por Cleber Toledo - Tribuna do Interior

Tribuna do Interior

Tocantins, Quinta-feira, 28 de março de 2024.
13/06/2017 - 15h09m

Sobre Tim Maia, paixão e minha preciosa, por Cleber Toledo

Cleber Toledo 
Divulgação
O ator Babu Santana encarna Tim Maia com perfeição na cinebiografia de um dos maiores nomes da música brasileira
O ator Babu Santana encarna Tim Maia com perfeição na cinebiografia de um dos maiores nomes da música brasileira
Assim que lançada estávamos em Goiânia e não aguentamos esperar por nossa volta a Palmas. "Tim Maia", a cinebiografia do cantor que embalou nossos primeiros anos de namoro, estava no Flamboyant Shopping Center, e lá fomos dona Sandra, nosso filho mais novo, Jorge Gabriel, e eu.

Já na sala, um outro filme projetava em minha mente à medida que nossas canções, com aquele vozeirão inigualável, iam dando ritmo, vida e emoção às história do gigante [em todos os sentidos], talentoso, criativo, inesquecível e polêmico Tim.

Uma das passagens dos anos 1980 â?? era 1987 â?? marcou mais. Eram os primeiros meses de namoro. O amigo me chamou, já no início da noite, para ir a Euclides da Cunha Paulista, a cerca de 50 quilômetro de nossa cidade na época, Teodoro Sampaio (SP). Bateu a preocupação. A paixão era tanta que o coração não me permitia ficar um dia sequer sem buscar dona Sandra na porta da escola e caminhar com ela poucas quadras até a casa da avó, dona Emília, onde dormia dia sim, dia não.

Ao portão, trocávamos uns beijos ardentes e dona Sandra, sempre preocupada com a hora, escorregava para dentro e eu descia a pé e saltitante uns dois quilômetros até a casa dos meus pais. Esta era a rotina religiosa e pontualmente de todos os dias, com a variação de lugar: ou até a casa de dona Emília ou à última quadra da Avenida Alfredo Andreotti, onde Sandra morava com os pais.

â?? Ã? vapt-vupt! â?? garantiu o amigo, que precisava levar uma peça de carro a alguém, ou algo do tipo que o tempo não permitiu que ficasse registrado.

Depois de muita insistência, relutante, cedi. Tomamos a estrada e eu pouco prestava atenção no que era dito. Ria sem saber de que, só por educação, preocupado e com os olhos fixos no relógio, um Orient de pulso com mostrador de fundo azul escuro e ponteiros brancos que brilhavam na escuridão da rodovia.

Em Euclides fomos em busca de uma pessoa que não se achava em lugar nenhum, mas que precisava ser localizada porque a peça deveria ser entregue em mãos para as devidas explicações sobre o conserto e detalhes que pouco me interessavam.

Uns 50 minutos depois conversávamos com nosso alvo e eu, já pra lá de agoniado, inconvenientemente, puxava o amigo em direção ao carro. Parecia que nunca concluiria a interminável esteira de explicações.

Depois de inoportunamente aporrinhar o rapaz a pegar a estrada, fazíamos, enfim, o caminho de volta para a nossa Teodoro Sampaio. Foi só quando eu relaxei, passei a rir de tudo e prestar atenção aos gracejos adolescentes. Até que o carro começou a balançar na estrada, chacoalhar para lá e para cá, obrigando-nos a encostá-lo. Já eram mais de 21h30. Olhando o pneu murchinho, eu chutava as pedras no acostamento e soltava impropérios que hoje não teria coragem de repetir, muito menos de aqui reproduzir. O amigo mandava me acalmar: teria tempo de sobra para buscar dona Sandra.

Como se não bastasse o imprevisto, nuvens pesadas encobriram rapidamente a lua e as estrelas. Pior: descobri que estava diante de um motorista tão inexperiente quanto eu na troca de pneu furado. Debatemo-nos até concluir o serviço pouco depois das 22 horas.

Próximo à escola saltei em disparada. Tarde demais. Sandra já tinha descido depois de esperar alguns minutos em vão, impaciente como até hoje. Uma chuva relativamente forte começou a derramar, e decidi correr para alcançá-la uma quadra antes da casa de dona Emília. Pelo menos manteria a sessão de beijos. Nada dela.

Cheguei à frente da velha morada de madeira, àquela hora sob espessa penumbra imposta pelas copas de árvores que escondiam as lâmpadas dos postes das proximidades. Parei pensativo, sentindo a água escorrer em cascata dos cabelos para a camiseta e dela para a calça e o chão. O tênis estava encharcado e a camiseta gelada colava na pele.

Quedei certo de que mais nada poderia ser feito. Agora, vê-la, só na noite seguinte, já que dona Sandra ainda não permitia que eu fosse à sua casa.

Teimoso como até hoje, relutava em aceitar a derrota mais do que óbvia. Pensava, pensava, tomado pela raiva que dá sempre que a sensação de impotência me domina. A mente dizia que já não havia o que fazer e que deveria me retirar. Apontava os culpados pela desventura da noite: o amigo chato e insistente e tantos lamentáveis imprevistos em tão poucas horas.

O coração rejeitava, no entanto, qualquer possibilidade de recuo e me empurrava a marcar território como se para dizer ao acaso que ele não venceria. Que portões, muros e paredes não podem conter a alma, ou melhor, almas gêmeas. Esse sentimento de que precisava me insurgir contra os reveses daquela malfadada noite foi ganhando volume, transformando-se em vontade, num desejo embrutecido, cego, totalmente irracional. Então, sob essa aura insana, com a chuva torrencial descendo por todo o corpo e encharcando ainda mais meus tênis, colando mais firmemente a camiseta à pele, engrossei a voz e explodi, com minha preferida de Tim Maia naqueles dias:

"Tanta coisa em mim mudou
Quando você chegou no meu coração
Foi difícil te encontrar
Que um bom motivo pra me apaixonar

Sonho tão bonito
Pedra preciosa
Uma emoção que a muito eu não sentia
Você tem o Dom da paz
Pra me conquistar assim
E, eu me entreguei de todo pra você"

Ali embaixo daquela chuva, com a alma leve, como se nada mais houvesse à minha volta, entoei "Preciosa" do início ao fim.

Só depois de encerrada a canção, com o coração aliviado, vingado dos reveses de uma noite desditosa, dos quais já nem lembrava, me retirei, como sempre, saltitante.

No dia seguinte fiquei sabendo pela mais do que deslumbrada namorada que dona Emília reclamou que mesmo quase aos 90 anos não conseguia ver todos os absurdos da vida.

â?? Um doido desse cantando na porta dos outros e na chuva! â?? queixou-se ela. â?? Cada maluco!

Pior que passados exatos trinta anos, o mesmo moleque apaixonado de 1987 ainda vive e seria capaz de novamente cantar Tim Maia sob chuva torrencial para a dona deste coração.

CT, Palmas, 12 de junho de 2017.
© 2015 - Tribuna do Interior - Todos os direitos reservados.
Expediente