Um Brasil comprado. "Como acreditar em esquerda e direita se ambas bebem o mesmo uísque comprado com o meu, o seu, o nosso dinheiro?" - Tribuna do Interior

Tribuna do Interior

Tocantins, Sexta-feira, 19 de abril de 2024.
21/04/2017 - 09h58m

Um Brasil comprado. "Como acreditar em esquerda e direita se ambas bebem o mesmo uísque comprado com o meu, o seu, o nosso dinheiro?"

Roberto Da Matta é antropólogo Publicado originalmente em O Globo 
Divulgação

O que está acontecendo com o Brasil? Será que essa nova onda de pornopolítica tem uma origem? � nova ou sempre aconteceu?
Saber a origem é importante porque toda gênese pressupõe um apocalipse. Afinal, tudo que começa, acaba.
Será que hoje vivemos o apocalipse que finalmente sinaliza um limite? Será estamos testemunhando o esgotamento de um estilo de lidar com as coisas públicas e com a falada e amada República?
Será que o Brasil continua sendo nosso mesmo depois de saber que ele foi vendido pelo governo Lula-Dilma a uma grande empresa que não é ianque, britânica, inglesa ou francesa, mas tão baiana quanto a Baixa do Sapateiro?
Quero me convencer que sim.
Acho que essa crise na qual os Srs. Emílio e Marcelo (pai e filho) e seus associados abrem o bico e falam com a serena superioridade dos doadores, obriga a um denso exame de nós mesmos.
Não é só um capitalismo de compadres. Ã? também um capitalismo ajudado por uma democracia de compadres. 
O que salta aos olhos é como a república â?? centrada em leis impessoais teoricamente válidas para todos â?? funciona seguindo uma renovada e imaginativa cartilha imperial. Nela, a etiqueta das simpatias dos baronatos mistura-se ao mercado e suspende a competição para os amigos. 
A mão invisível de Mr. Smith vira um escancarado abraço do lulo-dilmismo com a ambição germano-baiana da Odebrecht. A luta de classes foi desmoralizada pela simpatia pessoal. Nossa revolução é a da malandragem. Nada contra. Mas ela â?? eis crise que nos envergonha â?? também tem limites.
Como acreditar em esquerda e direita se ambas bebem o mesmo uísque comprado com o meu, o seu, o nosso dinheiro como diz o meu colunista favorito, o Ancelmo Gois?
Educados exclusivamente na linguagem da política, da fofoca e da economia, não sabemos o que fazer com esses favores e presentes tão bem analisados nas suas implicações sociopolíticas por Marcel Mauss. 
Toda democracia que se preza vigia a lógica do favor ou do dar-para-receber. Em todo lugar, quem é parlamentar, ministro e, principalmente presidente da República não pensa só na sua biografia, mas sabe que é um servidor do cargo que lhe foi concedido.
Ã? preciso muita vontade de querer desconhecer-se a si mesmo para imaginar que narcisistas (esse traço marcante dos chamados políticos) possam resistir aos poderes inerentes a certos papéis sem um rigoroso código de ética. 
Sem politizar não apenas decisões e projetos, mas os cargos que constituem a estrutura de uma nação ordenada debaixo da liberdade e da igualdade, mas vergonhosamente desigual.
Nosso problema não é apenas de legislação, mas de uma revolução nas práticas sociais marcadas por toda sorte de privilégio. Nosso berço é a aristocracia branca patriarcal misturada com a orfandade da escravidão negra.
Sem esforço, vamos continuar recaindo â?? tal como fazem os hermanos latino-americanos â?? na velha estadolatria, estadopatia e estadofilia. Na crença inocente de que podemos mudar nossas rotinas de poder sem transformar radicalmente nossa sociedade com os recursos da sociedade que deve englobar o Estado e o governo.
O enriquecimento escandaloso não é o do mercado. Ã? o que usa a ética maussiana do "dar-receber-retribuir" (base, aliás, da sociabilidade humana) sem controle e como um instrumento consciente de embolsar a riqueza nacional. 
� esse enlace incestuoso entre o pessoal e o impessoal, entre a igualdade legal e as hierarquias tradicionais que legitima as brutais ultrapassagens naquilo que Livia Barbosa estudou magistralmente como o "jeitinho" e este vosso cronista denunciou na desmontagem sociológica do "Você sabe com quem está falando?", em 1979.
Um desmonte que só veio a ter resultados práticos para seus usuários na Lava-Jato. Na operação que tem denunciado como crime a aliança entre ocupantes de cargos privilegiados e as doces amizades que fazem parte do nosso estilo de exercer e matar cordialmente quem discorda de nós.
Aqui, o "capital social" do Bourdieu casou-se com o "capital espoliador" do Marx. O padre conscientizado foi o petismo, os padrinhos e madrinhas, a velha elite que sempre aprisionou a sociedade negra e ex-escravocrata, com normas controladoras.
Nosso erro é pensar que sociedade não tem normas, estilo ou cultura. Esquecendo que entre o estado e a sociedade existe um "governo" e que nele estão nossos parentes, partidários e amigos, supomos que leis podem suprimir velhos hábitos. 
E quanto mais fabricamos leis, mais sofremos reações corporativas vindos de nossa própria rede de relações pessoais. Aí, amigos, está a chave da mudança ou da permanência. Do uso ou do abuso.
Agora que descobrimos como um presidente do povo e eleito pelo povo virou, como afirma tranquilamente o patriarca Emílio, um empregado de luxo da Odebrecht, talvez se comece a enxergar que o assunto é muito mais sério e o poço muito mais fundo.
O centro da coisa jaz em deixar que normas impessoais e válidas para tudo e todos sejam englobadas pela ética particularista, intimista e pessoal cujo axioma garante que cada caso é um caso.
Nada além do trivial que Weber e Tocqueville, com ajuda de Marcel Mauss descobriram.

© 2015 - Tribuna do Interior - Todos os direitos reservados.
Expediente